Por avaliações atentas aos contextos sociais

Por Max Gasparini e Elis Alquezar

 

“[…] em um determinado momento da aula da tarde, professora e alunos começaram a sair da sala carregando suas carteiras, atravessaram o campo de futebol e se posicionaram, em círculo, abaixo da sombra fresca de uma grande arvore fincada nas margens do rio. Como as salas de aulas não dispõem de ventiladores ou condicionadores de ar, o calor se torna insuportável, e por isso alunos e professores continuam suas aulas em baixo da sombra da grande árvore.”

 

O trecho acima faz parte de um diário de campo escrito no contexto de uma incursão etnográfica em uma comunidade ribeirinha da região Amazônica. Tratava-se da sistematização de um programa educacional voltado a populações ribeirinhas e povos indígenas que se localizam a grandes distâncias de centros urbanos e que por isso têm muitas dificuldades de acesso à educação. À primeira vista, a cena narrada se apresenta como evento corriqueiro na rotina de docentes e estudantes, em uma região onde o calor úmido da floresta prevalece praticamente em todos os meses do ano e obriga-os a desenvolver tais estratégias.

Como esta, inúmeras cenas do cotidiano destas pessoas foram documentadas e analisadas para o relatório avaliativo do programa, dando um panorama sobre as condições de realização das aulas nas comunidades. Que tipo de abordagem é esta que permite ao avaliador apreender um conjunto de aspectos específicos e corriqueiros? Que método permite que o cotidiano de uma comunidade efetivamente integre a avaliação de um programa social? Para refletir sobre estas perguntas é necessário tratar de um tema caro para quem trabalha com avaliação: os pressupostos filosóficos que constituem as principais abordagens avaliativas.

A avaliação é uma prática transdisciplinar formada por muitas abordagens metodológicas relacionadas às concepções epistemológicas de seus agentes. A forma como avaliadores e avaliadoras orientam seu trabalho varia em função de sua matriz filosófica. Por exemplo, por muito tempo os instrumentos de mensuração nascidos do positivismo lógico foram o centro das abordagens metodológicas no campo da avaliação. A noção de que a realidade a ser avaliada é dotada de uma existência objetiva, independente de quem avalia, gerou uma ênfase nas avaliações centradas no método, cujo rigor e neutralidade garantiriam o sucesso da avaliação[i].

Na contramão desta perspectiva, as avaliações construtivistas[ii] passaram a operar com a premissa de que o conhecimento se constitui nas interações humanas, relacionando o sentido dos entes avaliados aos significados atribuídos pelas pessoas à sua própria experiência da realidade. Nestes casos, a ênfase das avaliações muda do método para o juízo de valor, ou seja, o conjunto de aspectos que balizam os critérios com o qual se emitirá um julgamento.

Ao mesmo tempo em que o construtivismo alarga as fronteiras dos métodos de investigação da realidade utilizados no positivismo, ele acrescenta funções ao papel dos avaliadores e avaliadoras frente a seus objetos. Ao refutar a ideia de neutralidade na relação entre quem avalia e o objeto avaliado, ressalta o papel do agente no processo de construção das informações, que está evidentemente atravessado por sua intencionalidade política, postura ética, preferência metodológica e pelas relações que constrói com outros agentes da realidade em seus contextos sociais.

Voltemos, então, à questão dos contextos. Qual a importância dos contextos nos quais as pessoas dão sentido e materializam as intervenções (que são avaliadas)? Esta é questão central da reflexão de Raul Lejano, no livro “Parâmetros para análise de políticas: a fusão de texto e contexto.”[iii], nele o autor faz uma crítica à análise tradicional das políticas. Segundo o autor, o distanciamento entre analista e seu objeto de estudo esteve baseado em uma visão mitológica das políticas, ou seja, uma visão idealizada de um objeto fora de seu contexto.

Para Lejano, a análise que não considera os aspectos contextuais onde se materializa uma ação tende a ser enviesada (torta), estando permeada ou por percepções teóricas ou por concepções políticas de seus formuladores, ambas afastadas de sua interação com o mundo real. Lejano propõe um retorno à dimensão da experiência imediata, ou ao contexto real no qual os indivíduos dão sentido às suas vidas. O autor resume esta ideia defendendo uma contextualização definida como “o processo pelo qual os agentes políticos e as comunidades tomam as políticas (que podem ter sido concebidas em qualquer lugar) e a tornam como sua”.

A ênfase na experiência permite que os agentes reconstruam suas categorias analíticas e produzam sínteses explicativas. Os analistas passam a se ocupar de uma teoria do significado, não de uma teoria da verdade. Isto exige abandonar análises dos tipos positivista ou pós-positivista, incorporando um critério de autenticidade. Em outras palavras, examinar como a verdadeira interpretação (texto) de uma situação política é comparada com a experiência real (contexto) dos atores.

Como estas reflexões influenciam a avaliação de intervenções sociais? Nas avaliações de intervenções complexas, cujas práticas variam em cada contexto social, é promissora a abordagem que considera a experiência direta de avaliadores e avaliadoras no contexto onde se materializam as intervenções. Como no caso que inaugura este ensaio, o convívio com a comunidade ribeirinha no interior do Amazonas não só permitiu a análise de aspectos pré-formatados sobre a estratégia de educação, ou os critérios estabelecidos a priori, mas também permitiu a possibilidade de confrontá-los com os significados atribuídos pela comunidade. Suas expectativas, as dificuldades de acesso à educação, suas formas de viver a vida, seus valores e aspirações compõem um complexo quadro que permite reconstruir o programa a partir da complexidade que adquire ao ser transportado do plano teórico para o plano prático, ou ser “tomado” pelas pessoas, como diz Lejano.

A avaliação realizada a partir desta experiência tende não somente a produzir julgamentos mais justos, mas também transporta avaliadores e avaliadoras ao universo de significados, sensações e experiências que cada contexto possui, enriquecendo suas percepções. A implicação experiencial pode modificar sua forma de conceber a intervenção avaliada, o que além de ser algo inerente à condição humana investigativa, é algo desejado.

Afinal, é somente por meio da experiência que conseguimos compreender em profundidade a complexidade da vida das pessoas e, desta forma, sentir todo o calor que emana dos contextos com os quais nos relacionamos no exercício de avaliar.

 

Referências bilbiográficas

[i] Mertens, D. M. Philosophical assumptions and program evaluation. Spazio Filosofic, 13, 75-85. 2015.

[ii] Guba, E.G.; Lincoln, Y.S. Avaliação de Quarta Geração. Campinas (SP): UNICAMP; 2011

[iii] Lejano, R.P. Parâmetros para análise de políticas: a fusão de texto e contexto. Campinas, SP: Arte Escrita. 2012