Impacto coletivo e valor compartilhado: ampliando a responsabilidade integral

Por Gabriela Brettas e Antonio Ribeiro

 Há algumas décadas, o modelo de intervenção baseada na responsabilidade social empresarial movimenta organizações privadas a olharem para fora, conhecerem ou se aproximarem mais de seus públicos e dos territórios em que atuam, ampliarem seus investimentos em iniciativas que gerem efeitos sociais positivos, repensarem modelos de parcerias, entre outras ações. O paradigma orientador até aqui esteve centralmente fixado na mitigação dos impactos negativos do negócio e na busca pela reputação de empresas responsáveis. Neste pensamento, as demandas sociais e ambientais se colocam de modo periférico em relação à lucratividade do negócio – este sim na centralidade das empresas – e pouco articuladas com as estratégias de crescimento no longo prazo. Poucas são as organizações que já atuam sob outra perspectiva, planejando seus passos e tomando decisões que aliem tanto o desenvolvimento econômico do negócio quanto o desenvolvimento socioambiental, e que estejam atentas e ativas para uma construção de iniciativas coletivas, fundadas em estratégias e investimentos compartilhados com outros atores desde o início.

Ainda assim, é possível identificar uma tendência recente de iniciativas inovadoras que buscam transformar os paradigmas orientadores do investimento social e das suas práticas. As noções de impacto coletivo (collective impact) e de valor compartilhado (shared value) aparecem como bons exemplos, por provocarem o modus operandi tradicional e desafiarem organizações a reverem suas atuações, posturas e formas de relacionamento com comunidades e outros atores. A partir de nossa prática de consultoria com organizações do campo social privado, temos notado o princípio de um importante movimento de mudança de uma perspectiva de responsabilidade social, focada nos investimentos e projetos individuais de cada organização, para outra que podemos chamar de responsabilidade integral, entendida como aquela que responde igualmente a interesses de desenvolvimento econômico, social, ambiental, tecnológico e ético, a partir de uma noção clara de que não há avanços maduros e sustentáveis de outro modo.

Para reforçar esta provocação e engrossar o caldo das discussões emergentes e transformadoras, trazemos aqui o que nos parecem recortes essenciais sobre impacto coletivo e valor compartilhado.

 

Ampliando os compromissos e criando valor compartilhado

Nas últimas décadas, vimos um crescente movimento de cobrança às empresas por uma postura mais comprometida com a sociedade, meio ambiente e ética em suas relações gerais. Uma mudança está em curso, mas, ainda, a grande maioria das empresas continua vendo a criação de valor como decorrente apenas da performance financeira positiva no curto-médio prazo, deixando de se aproximar de necessidades importantes de seus clientes, por exemplo.

Muitas já entraram em crises após verem o orçamento despencar frente uma nova postura do mercado, que passou a buscar opções com olhar mais integral ou que, em retaliação, as boicotou diretamente. Crises como estas têm movimentado organizações para dois caminhos centrais: 1) rumo a mudanças que retomem a lucratividade no curto prazo para sanar seus anseios econômicos, mesmo que implique em mais exploração (laboral e ambiental, por exemplo), menos ética e frágil olhar para o futuro; 2) rumo a uma posição mais madura, passando a compreender que, para se desenvolverem de modo sustentável, é preciso crescer junto, crescer com a sociedade, com seus clientes diretos e indiretos, a partir de uma ressignificação da noção de valor e atenção e respeito ao uso dos recursos naturais.

A esta segunda e nova postura dá-se o nome de valor compartilhado, cujo princípio envolve a criação de valor econômico ao mesmo tempo em que cria valor para sociedade, com uma postura sensível, de escuta e compromisso frente aos desafios.

“Valor compartilhado não é responsabilidade social, filantropia, ou mesmo sustentabilidade, mas uma nova maneira de atingir sucesso econômico”

Michael E. Porter and Mark R. Kramer

 

Mas como virar a chave para o valor compartilhado? Alguns caminhos e práticas para isso podem ser:

Repensar seus produtos e mercados – analisar o que produzimos e ofertamos para quais públicos: Será que o que produzimos atende realmente aos anseios de nossos clientes atuais e potenciais? De fato estamos ajudando a criar uma sociedade mais madura e melhor em diferentes aspectos? Há algum público ou nicho que precisa de nossas soluções e não as estão acessando por razões ligadas à desigualdade ou outras restrições sociais?

Revisar e redefinir a produtividade e o impacto da cadeia de valor – mapear de ponta a ponta o que está envolvido no que fazemos, produzimos e vendemos, os impactos gerados para populações e meio ambiente: Que materiais utilizamos e como os descartamos? Conhecemos e operamos dentro de perspectivas mais maduras como a Economia Circular[1]? Como se dão os processos produtivos e como as pessoas estão envolvidas neles?

 Apoiar e favorecer o desenvolvimento de polos produtivos locais – desenvolver novos empreendimentos de impacto positivo nos territórios onde atuamos, revendo o modo como lidamos com a concorrência direta ou indireta, o que (de verdade) estamos fazendo e como interagimos com outras empresas e negócios locais em prol do nosso crescimento econômico Que empresas ou iniciativas emergentes precisam de apoio para o território prosperar e como apoiá-las? Quais potenciais parceiros podemos ter para gerar mais valor em diferentes frentes?

Desenvolver novas ferramentas e conhecimentos entre lideranças da empresa – para criar um olhar mais ampliado e profundo para as demandas sociais e a habilidade de colaboração e reflexão para além da fronteira lucrativo/não-lucrativo: Temos a habilidade de reconhecer as demandas de longo prazo de nossos públicos atuais e potenciais? Como ampliar nossa maturidade e conhecimentos para que nossa liderança seja mais ética, consciente e transformadoras, capazes de influenciar avanços na empresa e o no mundo?

 

Olhando para os lados e fazendo juntos

Nenhuma empresa opera isoladamente, há um ecossistema que influencia seus mercados e sua produtividade que não é controlável por um único ator. Assim, para alcançar resultados amplos, profundos e integrais, ressalta-se a necessidade de as organizações estabelecerem e participarem de coalizões multissetoriais, que envolvam diferentes tipos de parceiros.

A ideia de impacto coletivo se desenvolve justamente a partir da premissa de que, para resolver problemas sociais e ambientais complexos, é necessário que haja comprometimento e esforço conjunto entre distintos atores e campos. Em essência, o que caracteriza e diferencia tais iniciativas é que, para além da já amplamente difundida ‘atuação em parceria’, as ações de impacto coletivo não têm donos ou autores. Tão pouco se pode atribuir os resultados atingidos à participação ou investimento de uma determinada organização; ao contrário, as transformações produzidas são entendidas como consequência deste esforço conjunto.

Esta é uma mudança mais profunda do que talvez possa parecer. No campo do investimento social privado é bastante comum que empresas e seus institutos ou fundações empresariais desenvolvam seus planejamentos e estratégias de atuação com base em seus propósitos e lógica de seu negócio e, a partir disso, convidem “parceiros” para concretizarem seus próprios projetos – em geral, em relações mediadas pelo repasse de recursos financeiros. Iniciativas de impacto coletivo, ao contrário, têm como elemento central o problema social enfocado e os objetivos a ele relacionados é que mobilizam a articulação entre diferentes atores.

Além de uma complexa mudança de perspectiva e lógica de atuação, há uma série de desafios práticos quando se opta por atuar com outros, sobretudo, considerando-se que são colocados na mesma mesa diferentes interesses, abordagens, agendas e entendimentos sobre o problema. Por outro lado, dessa forma, reúnem-se diferentes expertises e possibilidades de contribuição complementares.

Alguns atores destacam condições e estratégias que podem ser desenvolvidas para abordar soluções a partir do impacto coletivo, tais como:

  • Estabelecimento de uma agenda comum;
  • Criação de sistema de medida compartilhado;
  • Comunicação contínua;
  • Existência de uma equipe de suporte;
  • Contribuição entre as atividades dos atores envolvidos;
  • Espaços e estratégias de aprendizagem sobre a iniciativa
  • Monitoramento e avaliação orientando a iniciativa e ampliando sua efetividade.

 

Para refletir

Sabemos que, no atual campo da responsabilidade social corporativa e do investimento social privado brasileiro, é inegável uma tendência de as empresas – e seus braços socioambientais – buscarem liderar e controlar os esforços e investimentos empreendidos. Esta postura só reforça uma perspectiva auto referenciada, na qual a busca por articulação com outros setores da sociedade se dá a partir de uma proposta de atuação já definida dentro da lógica do financiador, o que, muitas vezes, resulta em um conjunto de efeitos pontuais e mitigatórios, de pouco impacto junto aos problemas sociais mais abrangentes.

Não são poucas também as pressões e demandas às quais estas organizações estão submetidas e que impulsionam atuarem de tal forma. Internamente, as estratégias de crescimento do negócio se colocam como centrais, prioritárias e separadas da sociedade, restando às áreas socioambientais desenvolverem ações que compensem seus impactos e tendo que operar dentro da lógica empresarial – produzindo resultados com eficiência de recursos financeiros e em curto horizonte temporal. Externamente, estas organizações enfrentam um grande desafio de legitimidade: muitas vezes, grandes empresas são vistas pelos outros atores como sendo preocupadas apenas com seu lucro e interesses, o que limita seu lugar para tratar de iniciativas de desenvolvimento social; assim, torna-se mais difícil a construção de relações de confiança, uma pré-condição para o sucesso da colaboração.

Apesar dos diversos desafios e problemáticas organizacionais, as atuais dinâmicas sociais e ambientais – e os problemas a elas relacionados – clamam por um modelo de atuação mais sustentável e por esforços profundos, estratégicos e coletivos. No Brasil e no mundo, já é possível observar iniciativas que experimentam e desenvolvem este caminho, nos convidando a repensar nossas concepções, práticas e relações a partir de novos modos de fazer e pensar – como o impacto coletivo e o valor compartilhado.

Estamos dispostos a mudar?

 

Referências:

Michael E. Porter; Mark R. Kramer. Creating Shared Value: How to reinvent capitalism and unleash a wave of innovation and growth. Harvard Business Review, 2011.

Mark R. Kramer; Marc Pfitzer. The Ecosystem of Shared Value: Companies must sometimes team up with governments, NGOs, and even rivals to capture the economic benefits of social progress. Harvard Business Review, 2016.

HalliePreskill; Marcie Parkhurst; Jennifer SplanskyJuster. Guide to Evaluating Collective Impact. Collective Impact Forum.

Marcie Parkhurst; HalliePreskill. Learning in Action: Evaluating Collective Impact. Stanford Social Innovation Review, 2014.

John Kania; Mark Kramer. Collective Impact. Stanford Social Innovation Review, 2011.

Fay Hanleybrown; John Kania; Mark Kramer. Channeling Change: Making Collective Impact Work. Stanford Social Innovation Review, 2012.

Collective Impact Forum: http://www.collectiveimpactforum.org

[1] A Economia Circular é um termo que trata de um ciclo de desenvolvimento positivo, que preserva as fontes de recursos naturais, otimiza a produção, minimiza riscos e impactos. Preconiza estratégias como o descarte e reciclagem adequados, uso de compostos reutilizáveis ou passíveis de transformação para re-inserção na produção.